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Bandidagem institucionalizada

Tenta cancelar essas contas e você vai precisar de tirar férias, tomar ansiolíticos e fazer Reiki, pra resolver o problema. Foto: Reprodução/Internet

Márcia Lage
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Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu? Essa é a pergunta que Chico Buarque faz na primeira estrofe de Roda Viva, uma canção de 1968.

Cinquenta e cinco anos depois da estranheza do cantor diante de um tempo de ditadura e resistência, a resposta atual talvez seja que a gente acelerou de repente e o mundo foi que encolheu diante da Internet e seus tentáculos.

A tecnologia anda em círculos concêntricos, nos estrangulando feito cobra jibóia, com trilhões de aplicativos cheios de facilidades e respostas para todas as perguntas, menos as que fazemos.

Robôs invisíveis que copiam e colam as mesmas possibilidades, ad eternum.

Outro dia, mandei um àquele lugar e fui surpreendida com a seguinte gentileza: “Ainda não estou preparado para responder a essa questão, mas prometo melhorar”.

Anotei para dizer o mesmo a quem me insultar, mas a questão é que a construção de sites e aplicativos não levam em consideração o consumidor. As perguntas que eles criam atendem aos interesses deles, não aos nossos.

É absolutamente exaustivo tentar resolver um problema com um robô. A gente pergunta uma coisa e ele responde outra, até nos fazer desistir. E assim perdemos tempo, dinheiro, confiança, ficamos revoltados e não temos a quem recorrer.

Até pouco tempo, uma empresa tinha nome, sobrenome, CNPJ e endereço físico e, por isso, tinha também uma reputação a zelar.

Uma denúncia no Procom, uma queixa no Reclame Aqui, uma ação na Justiça de Pequenas Causas e logo o advogado aparecia para resolver a pendenga. Agora, nem ligam.

Descaradamente roubam do consumidor e tudo fica por isso mesmo.

É o caso das companhias aéreas que aplicam multas superiores ao valor das passagens; do Uber, que antes de enviar o motorista já desconta o valor da corrida no cartão e se ela não se concretizar não estorna o dinheiro; das empresas de ônibus que não remarcam viagens perdidas; das renovações automáticas de assinaturas e por aí vai.

De grão em grão, estamos engordando milionários e definhando nosso poder de compra.

É quixotesco lutar contra esses inimigos impalpáveis, ocultos numa rede de informações capciosa, dispostos a enganar os bobos com propostas sedutoras, do tipo um mês de teste grátis – e depois vem a conta, renovada com os dados do cartão obtidos na oferta.

Tenta cancelar essas contas e você vai precisar de tirar férias, tomar ansiolíticos e fazer Reiki, para resolver o problema.

De vez em quando me armo de paciência e reza e consigo devolver para a minha carteira dinheiro que estava indo pelo ralo da ladroagem consentida.

É preciso dar um jeito nisso. O Código de Defesa do Consumidor já não vale nada diante do avanço tecnológico.

E a desfaçatez com que essas empresas agem nos remete de novo aos versos de Roda Viva:

“A gente vai contra a corrente até não poder resistir, na volta do barco é que sente o quanto deixou de cumprir”.

Temos que lutar mais. Cansar essas empresas com reclamações, ações e exigências de reparo. Senão a Roda Viva nos esmaga com essa bandidagem institucionalizada.

Ouça a música de Chico Buarque:

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