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Mudei meu ponto de vista sobre como lidar com a velhice

Sustentar a velhice exige resiliência, amor à vida, honra aos antepassados e cuidado permanente com o corpo que nos sustenta. Foto: Reprodução/Internet

Márcia Lage
50emais

Os idosos que se exercitam de dia são diferentes daqueles da noite. Foi o que constatei quando tive que trocar o horário da hidroginástica para acomodar a agenda, lotada de atividades nesse final de ano.

À noite, os alunos estão na faixa dos 60 anos, alguns ainda trabalhando. No meio da manhã, estão todos acima dos 70. Da piscina, onde me aquecia nadando, eu os vi chegar.

Senhoras de bengala, senhores andando devagar, alguns com cuidadores. Era uma surpresa atrás de outra. A maior foi quando chegou a freira, de hábito cinza completo. Vai por maiô ou biquini? Perguntou minha curiosidade.

Saiu do vestiário de maiô preto e touca da academia na cabeça. Igual à todas, sem distinção de profissão ou credo. Relanceei a galera que ocupava de ponta a ponta a piscina olimpica: 16 mulheres e quatro homens. Eles são sempre minoria nas academias, em qualquer modalidade de treino.

Um deles não tinha equilíbrio nem entendia bem a ordem dos exercícios. A professora sugeriu: cola na sua colega e repete o que ela estiver fazendo. Deu certo. Surdo ele não era. Mas devia ter mais de oitenta anos e um pouco de labirintite. Via a hora que se afogava.

A aula seguiu pesada para uma turma tão frágil quanto a dos bebês da natação. Depois do aquecimento, com caminhadas na água e pulos para a esquerda e para a direita, cada aluno ganhou um flutuador. para os exercicios de pernas e braços.

Foi bonito de ver. Aqueles arcos coloridos se movimentando lembravam uma apresentacao de ginástica rítmica. E era lúdico, ao mesmo tempo.

Ao meu lado, três amigas tagarelavam sem parar. Dava para ver que eram intimas, companheiras de muita história compartilhada. Comentavam sobre médicos, tratamentos e mazelas, sem perder o ritmo da aula.

Embora os corpos e caras denunciassem a idade, tinham tônus muscular, agilidade e força. Principalmente, esbanjavam alegria, o que as tornava jovens, encantadoras.

Terminada a aula, fiquei para ver a saída do grupo. Ninguém estava corcunda ou curvado. A ginástica os deixava mais eretos e elegantes. Acima do peso, nenhum.

Corri para o vestiário para espiar a freira. Será que ela iria ficar nua na frente do grupo, como fazem as mulheres nos banheiros das academias? A idade não as constrangiam. Se enxugavam, se arrumavam na frente umas das outras, com a mesma descontração de adolescentes.

Foram se despedindo aos poucos e nada da freira. Demorou uma data para sair do banho, e quando o fez, estava com o hábito inteirinho de novo. Façanha de equilibrista, pois o chuveiro tem no máximo 50cm por 50cm.

O último chuveiro foi desligado. Uns dez minutos depois surgiu de lá a senhora mais idosa, cuja cuidadora esperava por ela no banco. Trajava um robe verde. que abriu parcialmente para vestir, com certa dificuldade, uma calça comprida de elástico.

Foi nessa hora que reparei que a calcinha que ela usava era uma fralda geriátrica. Depois da calça ela tirou o robe e vestiu uma blusa estampada sobre o sutiã que havia posto ainda dentro do box.

Não me contive. Perguntei se podia saber quantos anos ela tinha. Ela respondeu, cheia de orgulho: Tenho 92. Sou de 1931.

Disparou a contar histórias, enquanto penteava os cabelos, passava creme hidratante e batom. Quando pegou a bengala para sair, pedi permissão para abraçá-la.

Ela devolveu a bengala à cuidadora e me abraçou firme, cheirosa. macia feito colo de avó. Me senti acolhida numa tribo, imbuída de respeito por toda ancestralidade.

Quando ela se foi, estava renovada de esperança. A mudança de horário mudou também meu ponto de vista sobre como sustentar a velhice. Exige resiliência, amor à vida, honra aos antepassados e cuidado permanente com o corpo que nos sustenta. Tudo o mais é surpresa e mistério.

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