Ícone do site 50emais

Dia da Consciência Negra: Venceremos!

Uma história de orfandade, de desamparo, de desamor, de exploração. Foto: Reprodução/Internet

Márcia Lage
50emais

– Venceremos! Gritou a mãe diante da TV, com o punho direito levantado.

– Está comemorando o que, mãe? Não somos pretos!

A mãe tira o rapagão da cama, com autoridade e revolta.

– Vem cá. Olha aqui no espelho. Somos brancos?

– Eles estão falando de preconceito. Ninguém me hostilizou até hoje.

– Não hostilizou ainda, filho. Ou você é tão tonto que nem percebeu. De qualquer forma, vão fazer de tudo para que você não saia do lugar. Por isso estude e seja alguém. Pelo menos sabe ler e escrever e tem um teto.

– Isso é casa, mãe? Um quarto e sala onde você trabalha e a gente dorme, misturando nossas vidas com as vidas das suas clientes?

– É o que temos. Até aqui cheguei. Se quer mais, faça por merecer.

Não entro na conversa. Não é meu lugar de fala. É meu lugar de escuta há muitos anos. Desde que conheci essa massoterapeuta em início de carreira, lutando para deixar de ser empregada doméstica.

Uma história de orfandade, de desamparo, de desamor, de exploração. Perdida no mundo desde os sete anos de idade, quando ficou sem a mãe (do pai nem se lembra) e foi morar com um tio, que a vendeu para uma familia abastada.

– Cresci num quarto de fundos, meu filho. Sem saber onde estava, o nome dos meus patrões, o meu próprio nome. Só soube que era gente perto dos 30 anos, quando escapei do cativeiro.

– Sei dessa história, mãe. Muito triste. Mas já passou, não?

– Passou para você, que não entende nada. Tive você sem pai, para ter uma família. No dia que te registrei, me registrei também, me dando o nome de Maria.

Maria dos Santos. Filha de ninguém. Você não tem pai. Mas tem mãe. Maria dos Santos. Esta aqui, quem te criou para ser alguém. Não vá me decepcionar.

Silêncio. O filho levanta da cama e vai ao banheiro. Depois à cozinha. Toma água da geladeira. Fica sem lugar comigo na casa.

Eu o vi nascer. Fruto do acaso, de uma noite feliz num forró. A mãe só tinha a cara e a coragem: pariu o filho e o criou. No quarto e sala onde tira dores e celulites de clientes brancas, como eu.

Correu atrás de tudo: creche, escola pública, escola de inglês, catecismo… O menino é educado. Alto, bonito, bom de bola, bom de papo, inteligente. Formou-se em ciências contábeis faz dois anos. Ainda não se firmou na profissão. Vive de estágios. De trabalhos auxiliares.

– Apostei tudo nele. Pensei que ele seria doutor e me daria descanso no fim da vida. Já estou com quase setenta e não posso parar de trabalhar. Senão não pago o aluguel da quitinete nem ponho comida em casa. Tudo para os pretos é mais difícil. Mais demorado. Mas ele chega lá. Tem meu sangue. Tem estudo e liberdade. Só tem que aprender a abrir caminhos no meio do preconceito.

– Mãe, vou sair um pouco. Jogar bola com os amigos. Tudo bem?

– Vai com Deus, meu filho. E cuidado com a polícia.

A massoterapeuta termina o trabalho de olho na TV, que continua transmitindo a programação do Dia da Consciência Negra.

– Venceremos! Ela repete entre dentes, como se rezasse. Venceremos!

Levanto da maca com o bem-estar que suas mãos de mil tarefas sempre me proporcionam. Olho-a enquanto pago o atendimento. Estâ suada pelo esforço. Limpa o rosto cansado com uma toalha que mantém no ombro enquanto trabalha. Sorri e agradece.

Dou-lhe um abraco demorado. Tomada de vergonha e impotência.

Leia também de Márcia Lage:

Achei uma dádiva que ela partisse assim

Estes tempos sombrios em que vivemos

Marte Um, você não pode deixar de ver

Não vou me deixar acuar por que sou velha

A tecnologia está nos levando para longe de nós mesmos

A paranóia que pode vir com o envelhecer

O diálogo divertido sobre sexo entre a tia sexagenária e a jovem sobrinha

Repito, pacientemente, tudo o que ela fez por mim quando era minha mãe

Sair da versão mobile