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Solitários no espetáculo da vida

Erasmo e Gal: “Apagam-se simultaneamente, deixando o palco escuro para o próximo ato.” Foto: Reprodução/Internet

Márcia Lage
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Quem morreu hoje? Surpreendo-me pensando assim toda manhã, quando ligo o celular. A morte em dupla de artistas que me embalaram a juventude, (Gal Costa e Rolando Boldrim no dia 9/11), Erasmo Carlos e Pablo Milanês em 26/11), dão a impressão de que o Criador está com pressa. Quer terminar o ano abrindo vagas para que nova geração de artistas tenham chance de mostrar seus trabalhos.

Esses gênios dos anos 1960 brilharam demais. Ofuscam os que vieram depois, com a constância e o alcance de faróis marinhos. Viveram muito. Oito décadas em média. Apagam-se simultaneamente, deixando o palco escuro para o próximo ato.

Elza Soares foi a primeira a fechar as cortinas atrás de si, tão logo 2022 começou.Os que insistem em viver nos dão um susto de vez em quando, lembrando que não são eternos e que podem partir a qualquer momento.

Alguns já se despedem com seus últimos shows. Corremos todos para assistir e aplaudir. Pode ser o último show para nós também.

Muitos amigos que iam conosco a essas apresentações inesquecíveis ( dançávamos e cantávamos junto aos nossos ídolos, como se fôssemos parte da banda ou do back vocal) deixaram vagas as cadeiras ao lado.

A galera está ficando rala. A trupe de seis, oito, dez pessoas que se juntavam para assistir a um show e depois, ver o dia nascer falando dele, decorando poesia e música, minguou bastante.

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Estamos cada vez mais solitários no espetáculo da vida. Cada um dos nossos que deixa vazia a cadeira ao lado carrega junto nossa disposição de continuar na plateia. Nosso espaço de convivência já não são mais os bares, os clubes, os teatros e os cinemas.

Vemo-nos muito mais amiúde em hospitais e velórios. E quando fazemos festas, trocamos informações sobre remédios e doenças, comparando nossa decadência e nossa resistência.

Esta semana fui incluída num grupo de velhos conhecidos que se uniram para cuidar da mais alegre de todas as amigas. Aquela que comemorou todos os aniversários, viajou o mundo, deu risadas e brindou dias de sol e de chuva. Nunca teve nem gripe e agora tem câncer. E pânico.

Os amigos giram em torno dela animados e solidários, ocupando o excesso de tempo livre com excesso de zelo e carinho. Esse é o nosso destino final. Cuidar dos que se fragilizam antes, amar na doença aqueles que amamos na saúde.

Dentro de nossas cabeças, no entanto, um medo vai ganhando corpo. Qual de nós irá por último? Quem apagará a luz e descerá o pano, fechará o teatro e porá na porta a placa de “passa-se o ponto”?

Quem morreu hoje?

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